segunda-feira, 29 de agosto de 2016

"Quando o amor crescer em mim, eu vou voar" / Revista Bula

Quando o amor crescer em mim, eu vou voar

QUANDO O AMOR CRESCER EM MIM, EU VOU VOAR


Quando eu crescer, não quero ser igual a você. Fazer fortuna. Aplicar na bolsa. Comprar um carro asiático. Multiplicar o patrimônio da família. Criar estratégias contábeis para pagar menos impostos ao Governo. Esse mundo simplesmente não me interessa. Quando eu crescer, penso em me manter desgovernado o bastante para seguir o meu caminho. A minha declaração de imposto de renda, coitada, de tão pífia, vai caber num papel de balinha, rimada em versos adocicados ao som dos pífaros, provavelmente, um haicai. Quando eu crescer, não quero ser igual a você. Estudar em demasia até ficar burro. Tornar-me especialista em mundo-cão. Sonhar com metas, mercado e promoção. Achar poesia coisa de veado. Preencher planilhas Excel. Olhar para o chão, ao invés do céu, sempre que sair de casa pela manhã. Hei de tropeçar nas estrelas, ao raiar dos dias. Aliás, em tempo: quando eu crescer, não usarei despertadores, mas, que vai ter muito passarinho cantando na janela, ah, isso vai. Não me leve a mal, mas, quando o amor crescer em mim, eu vou voar. Isso não é devaneio. É promessa. Anote aí no seu diário de ocorrências estranhas. Quando eu crescer, nem de perto eu quero ser igual a você. Enxotar velho. Foder criança. Socar mulher. Torturar outro homem com a ajuda dos amigos. Tocar a música alto para abafar os gritos. Escute só: quando eu crescer, você já terá morrido, devidamente esquecido como toda e qualquer parcela insignificante da humanidade criada por Deus só para encher linguiça. Não posso aceitar que ele se ocupe com tamanha irrelevância, a ponto de conceder perdão e guarida aos canalhas. Quando eu crescer, não quero ser Deus, mas também não quero ser igual a você. Fundar uma igreja. Liderar homens fracos. Alimentar os cães raivosos que vigiam as fronteiras. Sobrevoar mantas de refugiados com um helicóptero da Cruz Vermelha. Atirar rango pela janela, num repetitivo gesto humanitário para se sentir menos pedra. Quando eu crescer, vou atravancar o seu caminho com as palavras mais macias que eu puder colher das lavouras poéticas de Manoel de Barros e Mario Quintana. Quando eu crescer, não quero ser igual a você, um sacana. Aplicar golpe. Tomar poder. Adestrar mísseis. Gozar planos de ocupação. Enxertar ogivas. Dizimar aldeias com um gás sufocante. Só mais um instante: quando eu crescer, você vai se perguntar, atônito, por que razão não se parece mais comigo. Daí será tarde demais. O amor que um dia eu senti por você já terá morrido. Criança diz cada coisa.
Ilustração: Zinaida Serebriakova

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