De Sarney a Lula, de Dilma a Renan, o que choca é a naturalidade da conivência, o ambiente de cumplicidade, a consciência de ilícitos, sem lembrança do interesse público
A conversa ganhou um tom confessional:
— O Michel, presidente... Eu contribuí pro Michel.
— Hum...
— Não quero nem que o senhor comente com o Renan. Eu contribuí pro Michel pra candidatura do menino... Falei com ele até num lugar inapropriado... na Base Aérea.
— Mas alguém sabe que você me ajudou?
— Não, sabe não. Ninguém sabe, presidente.
Com oito décadas e meia de vida, seis delas dedicadas ao artesanato da imagem de raposa política, o ex-presidente José Sarney conversou com o aliado Sérgio Machado com a naturalidade de quem se imagina com poder de influir sobre ministros do Supremo ou qualquer magistrado. Efeito, talvez, de meio século de interferências em indicações, promoções e remoções de juízes.
Na intimidade caseira, assentado na longa convivência e conivência com Machado, sentiu-se confortável para confessar a “ajuda” secreta do ex-presidente da Transpetro, que sabia estar sob investigação por corrupção em negócios feitos durante uma década no grupo Petrobras.
Trombou no gravador ambulante e, pela própria voz, colocou-se sob suspeitas. A “contribuição” sigilosa e outras transações agora devem ser expostas pelo mais novo “colaborador do complexo investigatório denominado Caso Lava-Jato” — identificação de Machado no acordo recém-homologado pelo juiz Teori Zavascki.
Hipocondríaco, Sarney procurava um elixir político, como também faziam Lula, Dilma Rousseff, Renan Calheiros, Romero Jucá e outros do PT, PMDB, PP e PSDB. Lula, por exemplo, começara o ano mobilizando sua tropa aliada no Congresso para modificar a essência das leis sobre colaboração de pessoas físicas e empresas. A origem delas remonta a abril de 1989 na Câmara, na comissão criada por iniciativa de Miro Teixeira, com participação de Michel Temer, relator, do então deputado Sigmaringa Seixas, hoje advogado de Lula, e José Genoino, ex-presidente do PT.
Lula, com a mesma singeleza de Sarney, julga decisivo o seu seu poder de influência. Na manhã de segunda-feira, 7 de março, por exemplo, queixava-se ao prefeito do Rio, Eduardo Paes, dos “meninos” do Ministério Público: “Eles se sentem enviados de Deus”. Paes concordou: “Os caras do Ministério Público são crentes, né?”. Lula reforçou: “É uma coisa absurda (...) Eu acho que eu sou a chance que esse país tem de brigar com eles pra tentar colocá-los no seu devido lugar. Ou seja, nós criamos instituições sérias, mas tem que ter limites, tem que ter regras...” Antes de dormir, falou ao advogado Sigmaringa Seixas de sua frustração com Rodrigo Janot. Lula entendia que ele tinha um dever a cumprir, a genuflexão em agradecimento por nomeá-lo procurador-geral da República: “Essa é a gratidão... Essa é a gratidão dele por ele ser procurador” — lamentou.
De Sarney a Lula, de Dilma a Jucá e Renan, os grampos escandalizam porque expõem o modo arcaico de se fazer política no Brasil. Há delitos previstos no Código Penal. Chocante, porém, é a naturalidade da conivência, o ambiente de cumplicidade, a consciência de ilícitos dos agentes públicos. É notável que os diálogos gravados não contenham sequer resquícios de lembrança do interesse público, ou mesmo referências à honestidade. Convergem na intenção de “acabar” com as investigações, em autodefesa. Talvez seja o milagre da multiplicação de patetas.